não será fácil voltar a acontecer uma deambulação domingueira tão extensa por aqui. por isso, é aproveitar e fartar, vilanagem! sobre os posts autobiográficos, então:
quando se pensa que se seria feliz se se fizesse vida a escrever sobre qualquer coisa, arranja-se maneira de pelo menos passar a vida a fazê-lo. desde que me lembro de saber escrever que o faço. e antes de escrever, desenhava. a minha existência sobrevive à custa de ser riscada, portanto. toda a vida tive cadernos. e quando a caligrafia se tornou um estorvo, pelo desábito, arranjei outros. hoje em dia, quando se pensa que se seria feliz se se fizesse vida a escrever sobre qualquer coisa, cria-se um blog. uma espécie de speaker's corner privado onde tudo é permitido, mesmo dizer mal da rainha de Inglaterra. escreve-se, sim, para fazer qualquer coisa deste ofício de existir. correndo o risco de me repetir, sou uma lírica por natureza. aqui, não me distingo. poderia dizer, sem mentir, que todos os meus posts são autobiográficos, se imaginar que escrevo como quem marca no chão um X e afirma: "este é o lugar de onde eu vejo o mundo".
à parte isso, a literalidade assusta-me. um escrever virado para dentro, apesar de tudo, não é exactamente o mesmo que um escrever sobre si. o que há de exorcismo e catarse e libertação numa escrita dirigida aos demónios interiores, é precisamente o que transcende a literalidade das memórias e dos afectos. é a transformação, a metamorfose proporcionada pelas palavras, que faz do que dói e do que comove qualquer coisa outra que valha a pena perpetuar. que não se lhe substitui mas que o universaliza, descentrando-o. isto é: o que dói, se transformado pela escrita, assume uma existência nas palavras que transcende o que é facto, o que é vivido, e adquire a sua existência própria enquanto lírica, independentemente do objecto que o alimenta. se eu escrevo para ti é porque me é conveniente que exista esse abstracto de alguém em quem eu possa reunir as coisas que gostaria de poder dizer. e digo-as de qualquer modo, quer me dirija a um tu real ou imaginário ou híbrido de todos os alguéns a quem gostaria de poder dizer coisas – porque o que importa é que há um propósito de escrever. as palavras emergem, como crescenças fibrosas num corpo a que têm que ser arrancadas, para garantir a sua sobrevivência. ou pelo menos é isto que se faz neste blog. arrancar nacos de carne à matéria do mundo.
num semelhante gesto, está sempre implícita a procura do outro. é que um escrever virado para dentro também não é exactamente o mesmo que escrever para si. se se escreve busca-se reconhecimento, empatia, comoção. escreve-se num blog em vez de num caderno privado porque há um espaço onde o outro desempenha um papel importante, de ver através das nossas palavras as coisas que nomeamos - e rever-se ou não nelas. mas de um modo ou de outro, sempre tocar. comunicar. ligar. mas se por um lado se escreve em prol da empatia, por outro a subjectividade – bem, na verdade preferia chamar-lhe ambiguidade – facilita as conclusões precipitadas, os equívocos, os mal-entendidos. é um risco que se assume, sempre que se escreve. até porque não escrevemos sempre para ser bem entendidos. e se na maioria das vezes me é indiferente a forma como me lê o anónimo leitor que de um lugar ou de outro vem cá parar, acontece que outras vezes me desencorajam as interpretações deturpadoras. há uma cumplicidade desejada, implícita na empatia a pouco e pouco conquistada, mas há um espaço de liberdade que o anonimato permite que a intimidade tende a diluir por completo. o que também é desejável por seu lado. gerir o grau de exposição. escrever de modo autobiográfico. fabricar. fabricar coisas melhores que os sentimentos com as palavras que eles originam. tudo coisas difíceis.
na maioria das vezes, nem imagino o quão obsessiva devo parecer a quem não está na posse da informação toda. o que é perfeitamente compreensível, uma vez que sou mesmo obsessiva. mas não me entendam mal: como diz um amigo meu, em pessoa sou muito menos bulímica do que na escrita. esgoto os assuntos, e anseio sempre secretamente para que não esgotem – enquanto há assunto, há matéria de escrita. esgoto as memórias das perdas, não porque me doam permanentemente, mas porque justificam a evocação de frases assim: “morto amado nunca mais pára de morrer” [Mia Couto]. agora imaginem repetir esta frase até à exaustão. a certa altura, ela há-de deixar de dizer tanto. há-de separar-se da própria metáfora que a anima, há-de desprender-se de qualquer objecto com que se identifique. e ainda assim, permanecerá uma frase fabulosa. é esse o valor da escrita. superar, em riqueza e valor, as próprias coisas que circunscreve.
há em mim uma rede de associações afectivas inevitáveis, que levam a sentir-me neste blog, por vezes, como habitando uma casa cheia de fantasmas. e por causa disso mesmo, por vezes, apetece-me abandonar tudo e partir para um deserto desconhecido. escrever noutro lado, onde seja possível ainda tratar fantasmas pelo nome, sem constrangimentos de pudor. mas não me interessa. isto é que tenho a dizer ao mundo: separei-me de ti, e o que me dói, dói agora secretamente. agradeço-te a música e os filmes, os amores e desamores, a pele e a ferida. mas não é já a ferida que esta escrita evoca: é o espaço em volta, de pele dorida, que eu não sei descrever – e por isso escrevo, como quem tacteia. dizer do amor, pela enésima vez, não é portanto equivalente a amar-te ainda. é só, como quem tacteia, procurar o lugar de ter-te amado. e por isso é que escrever é inventar, e é preencher os espaços em branco, e é completar o que falta à substância dos dias. atribuir uma ordem interna a todas as coisas. simular "um lugar onde pousar a cabeça". ofício de quem, como diz tão bem este gajo, "tem de gerir uma kasbah por dentro".
Etiquetas: escrever, teses tratados e outras elocubrações científicas