Há uns cinco anos, durante um Abril que foi, efectivamente, o mais cruel dos meses, tinha começado a ler pela primeira vez a
Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Eu era, na altura, uma jovem mulher adulta, no limiar daquilo que eu imaginava ser a 'flor da idade'. Era uma tarde de sol num café da Rua de Ceuta, e eu tinha acabado de comprar o meu primeiro livro do Rui Pires Cabral. Não o cheguei a tirar do saquinho de papel, como pensava, para exibi-lo como um recém adquirido tesouro. Entretinha-me, enquanto esperava, de mãos trémulas e espírito inquieto, com a
Mrs. Dalloway, poucos minutos antes de eu ter morrido, ou o mundo ter acabado (não me recordo com precisão, sei apenas que sucederam grandes desastres).

John William Waterhouse | OpheliaDepois regressei, como quem acorda de súbito, ou o mundo regressou, claro, como sempre fazem as coisas seguindo a sua ordem, voltando ao normal. Mas algo de mim ficou preso naquela tarde e já não regressou juntamente com o resto. Depois desse dia, li muitas vezes os poemas preciosos de Rui Pires Cabral, mas não li mais uma única página que fosse de
Mrs. Dalloway, até hoje (ou até há dois dias, quando escrevi este texto, mas o Blogger estava avariado). Cinco anos depois, em plena idade balzaquiana, também Abril se tornou um demónio domesticado.
O ano passado reconciliei-me com a
Câmpanula de Vidro, de Sylvia Plath, o livro mais assombrado da minha vida.
Mrs. Dalloway é o segundo. Estes dias, peguei-lhe novamente, com renovada confiança, em toda a graça dos meus trinta anos, e a leitura está livre do estigma do castigo. Abril não é mais o mês asfixiante das mortes entre as flores. Agora já pode ser só o mês próprio para a Ana Teresa Pereira.
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