o nosso cérebro até é uma máquina bastante eficiente, no seu instinto de preservação da máquina global humana de que faz parte. li
A Campânula de Vidro de Sylvia Plath há precisamente 6 anos, sem que me tivesse ficado na memória uma linha, uma impressão que fosse. tratava-se de um vazio total, uma ausência descarada que desmentia a certeza de uma leitura que, apesar de tudo, eu sabia ter sido apaixonada. mas que fazer então deste incompreensível
reset, sem marcas de personagens, de nomes, de enredos, sequer de sensações? ora, fiz o que se impunha: reli. só mesmo para perceber que o meu cérebro, ao proceder de imediato a um majestoso apagão, jogava a meu favor: protegia-me de mim mesma. ao reencontrar Esther e o seu definhamento lento e progressivo no interior da sua campânula de vidro, cada vez mais ausente do mundo e de si mesma, fui devolvida com um estalo a uma época longínqua, já distante, e fui forçada a revisitar um lugar em mim que julgava já esquecido: um túnel terrível onde uma pessoa se pode perder vezes sem conta, aquele velho
canto escuro que tudo sabia.
hoje sei-o,
A Campânula de Vidro é o livro mais terrível da minha vida, demoníaco, assombrado, perverso pela subtileza com que vai, muito lentamente, sugando o ar à minha volta sem que o perceba, até me fazer acordar a meio da noite incapaz de respirar. é claro que o cérebro é maleável, deixa-se enganar e manipular só até certo ponto; a velha máquina eficiente volta a tomar as rédeas da situação e assume a reafirmação da memória como aprendizagem:
esta é a tua rua de sentido proibido, na qual não voltarás a prevaricar. a enfermidade é sempre tentadora, mas a aprendizagem da respiração é um exercício de resistência.
a ironia disto tudo reside nas partidas que o pobre cérebro prega a si próprio. o mergulho no esquecimento, tão útil na superação daquilo que dói, estende uma perigosa armadilha, e o afincado impulso de auto-protecção acaba por encontrar-se na origem das mais constrangedoras contradições: é que a memória sempre impulsiona os mecanismos de prevenção de reincidências. senão vejamos o exemplo da personagem de Kirsten Dunst no
Eternal Sunshine of The Spotless Mind, a reviver uma e outra vez a mesma história dolorosa, justamente aquela que tinha preferido apagar do seu cérebro, mas que pela ausência de um luto, de um marco na memória, a deixa vulnerável às recaídas, e ao regresso aos mesmos lugares errados de um passado ainda recente.
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