chovia desalmadamente.* um semáforo tinha-me feito parar bem no meio do Largo do Senhor dos Aflitos. No rádio, a Marisa Monte sussurrava que ia
fazer uma canção para inventar o nosso amor. terá ela falado com o Daniel Filipe? coisa triste, esse tal de amor, que precisamos inventá-lo de cada vez que um corpo suspira por outro corpo. coisa triste, meu deus, a falha da memória. porque não há-de ser senão por reincidente esquecimento que necessitamos inventar o amor a cada passo, como se aprendessemos de novo o que até então nos era desconhecido - como se não soubéssemos que
um homem e uma mulher que se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva tinham já inventado o amor
com carácter de urgência.
e tu, através dos anos ainda não cresceste. ainda não aprendeste que nós não tínhamos um quarto de hotel nem uma tarde de chuva, mas tínhamos a luz de Lisboa e os passeios junto ao Tejo, e inventamos um dia o amor com carácter de urgência. não aprendeste que o Nick Drake tinha razão, e entretanto a espera esgota-se e esgota-me e esgota-nos. tu ficas desse outro lado de dentro das coisas onde eu não chego, e esse amor que inventamos outrora fica suspenso, pendurado como um bacalhau seco que ninguém come, como roupa esquecida no estendal, à mercê da chuva, do vento e do sol. enquanto dormes, nos meandros do medo,
a noite abre meus olhos:
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reuno baldes, estes vasos guardados
* mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração.
José Tolentino de Mendonça in A Noite Abre Meus OlhosEtiquetas: fruta esquisita menina aflita, morto amado nunca mais pára de morrer, poesia