É verdade que a construção de um
"eu" literário não ocorre sem solavancos, ou surpresas inesperadas, súbitos acessos de vergonha, ou rasgos de imprevisível admiração. Não somos sempre aquilo que já fomos, e nem sempre os lugares familiares nos pertencem para sempre.
À força de tanto massacrar o lugar da ferida (oh, a insistência na persistência da memória...), a pele inesperadamente endurece, impermeabiliza-se: cicatriza. Não se deixa massacrar. A fina sensibilidade que permite uma devoção sem par ao género poético pode tender, num primeiro momento deste exercício de sobrevivência, a incitar a um gesto de recusa: a minha
pedra polida, perfeita e minimal, tornou-se tão mínima, tão mínima, que quase se evaporou. A poesia existe algures dentro do meu corpo apenas como um grão de areia, indelével, mas vagamente imperceptível.
A minha pele endureceu e eu não consigo manusear a subtileza dos versos como antes. Gosto de outras coisas. Gosto menos da escrita como agressão. É como o Bartleby, também
prefiro de não. As palavras já não encenam, a cada momento uma pequena morte. São outra coisa. São uma coisa qualquer à procura de nome, à procura de lugar. Nos últimos tempos, o grande silêncio em que a exaustão me levou a mergulhar quase me levou a crer que se extinguira em mim qualquer coisa: a capacidade de dizer, a acapacidade
de ser.
Mas está tudo lá, de novo inesperadamente: o universo inteiro no meu grão de areia. A poesia volta toda a fazer sentido quando regressa ao lugar do fascínio e da aprendizagem inicial: em tempos de desordem, angústia e terror, o sono não possui qualquer domínio. O medo, contudo, não soçobra, pois por aqui já aprendemos a rodear-nos de bom
juju. A
límpida medida de Sophia de Mello Breyner Andresen sublinha a razão por que consigo atravessar, a custo, o deserto da insónia:
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno ventoEtiquetas: against demons, cinema, dedicatórias, filosofia e metafísica quotidiana, poesia, this magic moment