aprendi logo aos 12 anos uma das mais importantes lições da minha vida: a cena da donzela ofendida não funciona. não no mundo real. era em Londres. eu queria muito que aquele rapaz ali ficasse o resto da noite e que se desfizesse em enfatuados desejos por mim, mas não ia haver cá nada de abusos. e claro, resultado: não houve cá coisa nenhuma, o gajo raspou-se. o meu ego ferido chorou baba e ranho, fez o célebre número
ai eu ai eu ai eu que vou morrer de desgosto, não há por acaso por aí daquele veneno que a Julieta tomou? decidi instantaneamente que ia amuar para sempre. ou pelo menos até ele se sentir suficientemente culpado para me vir cair aos pés. durou-me uns cinco minutos. vá, uma tarde. um passeio de barco falhado pelo Tamisa (os desencontros também têm coisas boas), e a Grande Deusa dos Espíritos Mafiosos teve oportunidade de logo ali iluminar o meu pobre espírito atormentado. percebi de imeditado que provavelmente ele ficaria baralhadíssimo se, no regresso, não mais me encontrasse chorosa e ofendida, mas antes com a boa disposição e a querideza de sempre. o dito
cagar no assunto. a Deusa não me enganou. um olhar incrédulo, um segundo de hesitação, um esgar de admiração, e pronto, tinha-o no meu território outra vez. nunca mais caímos aos pés um do outro, mas fomos grandes amigos (dos melhores) até a geografia nos separar.
naquela altura, naquele preciso momento de inversão de estratagema, ainda que ingenuamente, algo aconteceu. na altura eu ainda não o sabia, mas estava a assinar um pacto com o diabo. ao assumir um despudor absoluto em passar por cima de qualquer desconsideração, em nome de um interesse afectivo maior que pretendia orquestrar, abraçava oficialmente a minha sina de mulher de bandido. nunca mais pude escapar-lhe, nunca mais me foi fácil gostar de alguém que gostasse de mim. passei a viver sempre no lado errado da noite, buscando consolo em bocas proibidas, impossíveis. não é, de todo, uma apologia do sofrimento inútil. é só assim que as coisas são. as pessoas são más. eu sou uma pessoa má. e como em tudo, há conforto no reconhecimento, e há a impossibilidade da fuga a uma natureza comum. metade de mim, pertence ao reino dos infernos. também me habituei a conviver, portanto, com os lugares errados da minha cabeça. as minhas leis são mais epidérmicas que morais. o corpo é como um habitáculo gigantesco para toda a porcaria que somos capazes de fazer. e o que somos capazes de fazer é coisa para nos transformar, moldar a forma do nosso corpo.
(
i suppose i should be happy to be misread, better be that than some of the other things i have become.
aimee mann.)
há uma certa dose de cinismo a que não se pode escapar. acredita-se menos na limpeza das almas, muito pouco na pureza das matérias, quase nada em asceses e histórias felizes. mas por outro lado, não se foge à maldição do amor, à violência da paixão, ao castigo da solidão. uma lição mal aprendida, ou um fascínio desmesurado pela aceleração em queda no abismo, eu sei que vou cair, e caio de bom grado, onde eu toco tudo se transforma em ferida, o amor é uma maldição que eu procuro, porque eu tenho
milhas para andar antes de dormir mas espero um dia ainda adormecer,
tenho três grandes desgostos, que precisam de três grandes esgotos, quem me dera ter três ventrículos no coração. o cinismo convém à idade adulta, quando não nos podemos furtar à convivência. eu, que tenho um coração elástico, sou capaz das mais inacreditáveis acrobacias. elasteço, endureço, morro uma pequena morte e regresso, com aquela forma mansa de gostar que resiste à decepção. o meu rosto, que eu achava que ia envelhecer demasiado cedo, demasiado depressa, como o de Duras, não envelheceu. mas o fruto da minha boca é tão amargo quanto doce. quando eu mordo, é para matar. tudo me dói, muito em particular o estar viva, e o mundo inteiro é a minha expiação. confesso que gosto cada vez menos de pessoas, ao passo que gosto mesmo muito de algumas, bandidas, filhas da puta. sou capaz de gostar infinitamente de quem me faz mal.
à margem, cresce uma certa magnanimidade desconcertante. tenho 12 anos outra vez e aprendi uma lição. uma vida fodida vale aquilo que vale. o perdão é uma coisa fátua, um mito judaico-cristão semelhante ao da culpa. mas poderia dizer que a capacidade para o perdão aumenta na proporção directa do desejo em questão. por isso é tão complicado justificar-me (e por isso tão raramente o faço). poucos compreendem a capacidade de gostar além da decepção. os meus melhores e mais antigos amigos sabem que jogamos sempre um jogo de harmónio, como a respiração do universo: ora inspiramos, ora expiramos, ora próximos, íntimos, ora afastados, distantes. é um ciclo que precisa de poucas palavras. é uma lição que demorou um pouco mais a ser aprendida. a certa altura, sabemos, apenas. como o ritmo cadente das marés. vai-se, mas volta-se. eu aprendi, como Penélope, o nobre ofício da espera. enquanto encosto ao lado errado da noite, entre bocas e corpos proibidos, tenho três grandes desgostos que não saram, que não poderão nunca sarar, e uma série de amores emergentes, algumas noites de insónia, alguns momentos breves de estar perto de qualquer coisa, como quando respira perto do meu pescoço um certo homem moreno, que diz que gosta de Boris Vian.
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