of course it hurts when buds burst *
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quando dormia, e se por acaso o sono se lhe agitava, revirando-se na cama em busca do lugar mais propício ao sossego, acontecia-lhe por vezes uma dor fina, aguda, ora quase imperceptível, ora dilacerante, vinda de lugar nenhum que lhe fosse conhecido, do fundo das entranhas. como se de algo extremamente improvável se tratasse, uma adaga que explorasse a fundo os meandros do seu corpo, nenúfares que desabrochassem no interior do peito.** um dia, uma dor grave, funda, levou-a ao médico, acreditando que se tratava de uma angina. angor pectoris.
o resultado da investigação provou ser bem outro: um coração de vidro. frio, translúcido, frágil. por vezes, durante a noite, uma agitação profunda provoca um desequilíbrio, um estremecimento. o corpo tomba inadvertidamente, desastrosamente, sobre o lado esquerdo. o coração desfaz-se em mil cristais afiados como estiletes. é por isso que, nessas noites, o peito dói e sangra e geme, como se mãos invisíveis cortassem, fio a fio, o tecido vivo do tórax.
a tarefa das manhãs é a da reconstrução. aprender, porque não pode ser de outro modo, o ofício de costureira: refazer, fio a fio, o tecido desfeito da caverna torácica. como quem reconstrói um templo devastado, lentamente, pedra a pedra, suportando a agrura. depois, o ofício de vidreiro: fundir a matéria vítrea do coração, juntar os cacos, liquefazê-los, ter esperança na fidelidade da réplica. executar, passo a passo, a metódica tarefa de aprender a morrer, para depois (re)nascer. ao longo dos anos, o coração de vidro adquiriu uma coloração avermelhada, sanguínea. a cada noite, parece que a mancha vermelha cresce, aumenta, quase ocupa o espaço todo. diz o médico que é vidro tingido, recozido, manchado, ping, ping, uma gota por cada ferida, uma ferida por cada estilhaço, nas noites em que uma agitação profunda fez revolver um corpo numa cama jogando-o em inevitável desequilíbrio, por fim tombando sem cuidado sobre o lado esquerdo, onde o peso inteiro esmaga um pequeno orgão frágil como uma jóia, que se estilhaça, cortando a fundo pela substância do sono com uma dor fina, aguda, de flor nocturna que desabrocha no espaço insuficiente de um peito.
* Karin Boye
** Boris Vian, A Espuma dos Dias
Etiquetas: exercícios de anatomia, fruta esquisita menina aflita, miles to go before i sleep
posted by saturnine | 22:49 |
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