Tratado das contradições fundamentais #1
O trágico habita na impossibilidade do não-ser - versão extensa
«Imóvel e obstinado, o demónio não respondia. Até que, por fim, coagido pelo vencedor, desatou a rir e proferiu as seguintes palavras: 'Raça efémera, e miserável, filha do acaso e da dor! E tu, por que me obrigas a revelar-te o que mais te valeria ignorar? O que tu deverias preferir não o podes escolher: é não teres nascido, não seres. Seres 'nada'. Já que isso te é impossível, o melhor que podes desejar é morrer, morrer depressa'.» [Nietzsche | A Origem da Tragédia]
2ª premissa do problema: «Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia.» [Albert Camus | O Mito de Sísifo]
3ª premissa do problema: «Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. (...) Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.» [Albert Camus | O Mito de Sísifo]
desenvolvimento sem conclusão:para Camus, o suicídio surge como uma confissão de incapacidade: é-se ultrapassado pela vida, não se consegue compreendê-la, enfim - não aguentamos a desordem estuporada da vida. [Herberto Helder] o desejo da morte é uma entidade antiga. perante o desespero, reconhecida a impossibilidade de não-ser, resta ao espírito derrotado ansiar pela rectificação dos males maiores pelos menores: que a morte venha, que restitua a tábua rasa, que interceda sobre a consciência com o seu magnânimo e perpétuo silêncio. o desejo da morte é o único substituto possível para o desejo impossível revelado por Sileno: aquilo que eu mais queria, não ser, nunca ter existido, é por natureza um desejo impossível, pois se o sinto, já existo. o que desejo então é que possa interromper esse fardo da existência, resituir-me ao nada por que anseio, eu que não fui feito à medida deste mundo, que me ultrapassa, que me derrota, que não desejo, para que não sirvo.
a tristeza cavalga por vezes no peito de um homem com a força de mil cavalos, e toda a luz de um sorriso não basta para apaziguar o que é selvagem e indomável. todo o calor de um abraço não chega para aplacar uma tão incontida fúria. pode acontecer por vezes que esse homem sucumba à voracidade da sua tristeza. pode acontecer também que reconheça que a sua vida não lhe pertence. caminha dia após dia carregado de laços invisíveis, atado por cordões umbilicais indeléveis a toda a vida que o rodeia - família, amigos, trabalho, conhecidos, lugares amados, tarefas por cumprir. sabe que a sua vida pertence também a todos aqueles que se encontram nos extremos dessas ligações. precisa de autorização para se retirar. por decoro, nunca a pede, resigna-se. isto há-de ter aqui uma contrapartida que me está a escapar. depois, por vezes, acontece-lhe experimentar um breve milagre: acredita ver o céu azul, respirar o ar fresco do cimo da montanha, consegue imaginar Sísifo feliz. porém, quando a noite arrasta consigo novamente o som da pedra que desliza, cavalgando, até ao fundo da montanha, abre-se no peito desse homem toda uma caverna de dores insuportáveis. Sísifo é apenas brevemente feliz. o peso da sua pedra é imenso, e dia após dia esmaga-o, porque o envelhece. então, doem a esse homem todas as terminações nervosas, cada ligação umbilical ao mundo, medita novamente sobre a forma de se extrair sem desastre a esse sofrimento de estar vivo. mas esse é também por sua vez um desejo impossível. só se sai batendo com a porta, deixando um trilho de destroços atrás de si. talvez por isso, o homem que deseja não-ser ensaie lentamente um vago desaparecimento. o homem que quer morrer será antes de mais um misantropo. se o desaparecimento é progressivo e contínuo, o mundo reclamará menos o seu abandono. não pede autorização, que nunca lhe seria concedida: faz por ser esquecido, ao mesmo tempo que deseja que o não-esquecimento alheio o salve.
enquanto a memória de Sísifo feliz resistir, o homem misantropo saberá apreciar a luz de um sorriso, o calor de um abraço, a força de uma alegria vital, precária, mas determinada. deseja morrer mas também deseja viver. equlibra-se no fio da navalha. espera qe algo ceda. não tem força para exercer o domínio sobre o seu destino, que lhe parece arbitrário. resigna-se então e espera. é tão paciente quanto é forçado a sê-lo o homem que não quebrou perante o jugo da loucura. entretanto, no seu peito cresce um estrondo cavo, ritmado, que se assemelha ao som das ferraduras.
Etiquetas: filosofia e metafísica quotidiana, miles to go before i sleep, teses tratados e outras elocubrações científicas
posted by saturnine | 00:37 |
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6 Comentários:
Uma outra solução para o rei Midas era desejar ser feliz ponto. Depois o tipo que lhe fosse conceder o desejo que se amanhasse. ;)
(tens que convir que apesar de trivial é uma solução razoável)
É bem possível que o acelerador do CERN cause um buraco negro* e nos mande desta para melhor. Ou vá: desta para o nada.
* Ouvi dizer.
fogo, pá...esta cena atinge-me em cheio.
belíssimo post, muito bem escrito, do melhor que tens feito.
[vou ali tentar respirar fundo e já volto]
*
there are a lot of answers and even more questions, but this is still a great post.
matilde, esse é um desejo por demais ingénuo e pouco de acordo com o existencialismo da coisa. :)
Samuel: esperemos para ver (i'm curious). :)
alex: enfim. (...) *
happy and bleeding: :)
eu não acredito propriamente que seja possível ser feliz a tempo inteiro, basicamente o desejo seria irrealizável, daí dizer a minha segunda frase. :)
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