Agnès e outros distúrbios líricos
se tivesse que escolher de entre todas as palavras do mundo as que mais me dizem - e que mais dizem sobre mim - sem qualquer hesitação seriam estas:
Não quero ser nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.»
Álvaro de Campos
a descoberta de um poema como a Tabacaria aos 15 ou 16 anos é um episódio francamente marcante na vida de uma adolescente. uma abertura assim abrupta e incisiva, irredutível, sem rodeios nem contemplações, como um soco no estômago, é coisa para permanecer marcante para o resto da vida. nunca encontrei outros versos com tão absoluto e inultrapassável significado. é uma pungência para a qual não poderá jamais haver segundas palavras, reformulações ou ajustes. o início da Tabacaria é a evidência inquestionável da perfeição lírica. a personificação exacta da pedra polida, mínima, despida de tudo quanto é acessório, que a poesia deve ser. não deixa de ser curioso que anos mais tarde me tenha deparado com isto
«I like darkness confusion and absurdity, but I like to know that there's a door I can escape into an area of happiness.»
David Lynch
e percebido que, no fundo, até dizem o mesmo. há um sentimento comum, de contradição essencial, que reune ambas as afirmações num mesmo domínio da plena identificação metafísica. por que é que eu haveria de ter que escolher de entre todas as palavras, estas, para que o mundo saiba o que tenho a dizer de mim, isso é que já não sei. como é certamente evidente, este é por excelência um blog na primeira pessoa. também aos 16 anos, li o livro que marcou a primeira grande viragem rumo a um crescimento à força, inesperado: A Imortalidade de Milan Kundera. não devo ter relido nenhum outro livro tantas vezes, ao ponto de chegar a confundir-me com ele. Agnès foi certamente uma das personagens mais marcantes da minha vida até ao momento. durante anos imaginei que de facto não deveria haver nada que uma mulher pudesse desejar mais do que enfrentar uma multidão segurando um miosótis à altura dos olhos. aniquilar o mundo, o excesso de gente, os ruízos, as vozes, a insolência intrusiva dos transeuntes com um amuleto carregado de simbolismo - Agnès, caminhando como se fosse invisível, como se desaparecesse, e caminhando rumo ao desaparecimento total, avançava como quem dizia: forget-me-not. pode fazer-se desaparecer o mundo nos concentrarmos numa minúscula flor azul, segura à altura dos olhos. Agnès era especial. a multidão não a via realmente. não podia supôr que os seus pensamentos não eram deste mundo. os seus gestos eram daqueles que duravam eternamente, deixando o momento suspenso na graciosidade de um mover de braço. Agnès não gostava das mulheres que não sabem fazer outra coisa senão falar de si. como aquela no balneário do ginásio que, em escassos minutos, afirmou claramente ao mundo o quanto gostava de duches frios. eu sou esta mulher a interromper o imaginário sanitário de Agnès. eu sou esta mulher que chega ao mundo e, mais do que anunciar ter coisas para dizer, as diz mesmo. eu sou o besouro insolente de Kundera. mas que não se deixem enganar: eu não quero que o mundo saiba de mim. falo tão somente para que o mundo me responda.
Etiquetas: afirmações identitárias, fotografia, os livros
posted by saturnine | 03:14 |
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4 Comentários:
eu ainda só li A Insustentável Leveza do Ser e como foi na minha adolescência, suspeito do fascício que me fez sentir, como suspeito de tudo o que me marcou nessa época de viragem constante. por isso quero relê-lo para comprovar ou deitar por terra o fascínio antes produzido. a Imortalidade é tantas vezes falado que também me deixa curiosa. seres tu a falar dele, entorna o caldo. vou ter de lê-lo mesmo. ;)
acho que é compreensível suspeitar do fascínio. mesmo eu, que pelo caminho li praticamente todos os livros do Kundera, tenho sérias dúvidas que o fascínio fosse o mesmo se os lesse agora pela primeira vez. contudo, e pelo que me lembro, acho que "A Imortalidade" é mesmo um bocadinho especial. também gostaria de relê-lo outra vez. faz-te a ele, sim! ;)
De todos os que li,e foram vários, é sem dúvida o meu favorito. Sim,acho que tem algo de especial.
ah, esse avatar... posso dizer "bons olhos te vejam"? ;)
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