a febre, a enfermidade e a cura
ao entrar na primeira idade aulta, uma segunda febre literária com Marguerite Duras, a escritora amaldioçoada que dizia que escrever não nos salva de nada, em quem reconheci um traço comum: descobrir que, por mérito das catástrofes que se abatem sobre nós demasiado cedo, se envelhece muito cedo também, e muito depressa. eu acreditava que em poucos anos teria um rosto endurecido, de pedra, como o de uma estátua milenar. o que sublinha a fina ironia de ter, aos 30 anos, uma carinha de 20.
na idade balzaquiana, arrasta-se a mesma febre literária há vários anos: Ana Teresa Pereira, que comecei por amar e odiar, cujos livros sempre me apaixonaram tanto quanto me irritaram, mas que acima de tudo sempre me subjugaram e mantiveram sob um fascínio incontornável, com algo de místico, a que acresce a insondável necessidade de um retorno. acontece com a primavera. Abril, toda a gente deveria saber, é o mais cruel dos meses* (ora porque há pequenas mortes a carpir* ora porque é certo que dói o rebentar dos botões*). o mais tardar em Maio, é como um chamamento: começa o nervoso miudinho, a inquietação que impede de me concentrar nos outros livros, e já sei que tenho que - como quem cumpre um ritual - ir buscar os livros de Ana Teresa Pereira. com os anos, as histórias e a escrita tornaram-se mais refinadas, mais subtilmente intrincadas, tecendo entre si uma filigrana finíssima, como uma teia, em que não posso deixar de me enredar. aos poucos, o grande quadro vai-se alargando. as inúmeras referências são aos poucos iluminadas por uma luz mais generosa, tão mais generosa quanto o percurso da leitura através dos anos tenha sido mais fértil. os livros sucedem-se como marcos num labirinto, cada um conduzindo mais próximo de qualquer coisa, ainda que nunca de uma saída. de Ana Teresa Pereira a Tonino Guerro, a John Milton, a Truman Capote, a Henry James, a Iris Murdoch, a Shakespeare, sem esquecer a música, até às Variações Goldberg tocadas por Glenn Gould, que poderia ser o disco da vida de muita gente (e se calhar é mesmo). tudo passa a fazer mais sentido, e por isso desculpo-lhe os clichés e os livros menos bons. neste momento compreendo que a leitura e releitura de Ana Teresa Pereira tem sido parte integrante (e necessária) de um processo de construção de identidade - para não dizer, de crescimento. eu, habitualmente, quanto mais leio, mais escrevo. mas tenho dado por mim a descobrir outra coisa: quanto mais leio, menos escrevo. dou por mim confusa entre a matéria das histórias. às vezes acredito que não posso aspirar a escrever nada, porque sou uma personagem à espera de um escritor.
Etiquetas: Ana Teresa Pereira, grandes amores, os livros, you must believe in spring
posted by saturnine | 13:25 |
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
2 Comentários:
hum... pirandello :-)
Quanto mais leio, menos escrevo. É uma fórmula que também conheço. E quanto mais leio... mais leio. São as nossas referências os nossos maiores opressores. É o patamar de exigência que sobe!
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial