como ser atropelado por um livro em poucas linhas:
«Há livros que fazem parte de um plano e livros que, tal como um carro que passa um semáforo encarnado, se atravessam violentamente na nossa existência. Este é um dos que passam o semáforo. Encomendaram-me uma reportagem sobre mim próprio, e por isso comecei a seguir-me para estudar os meus hábitos. Nisto, um dia disse para comigo: «O meu pai tinha uma oficina de instrumentos eléctricos de medicina.» Então apareceu-me à frente a oficina, comigo e com o meu pai lá dentro. Ele estava a experimentar um bisturi eléctrico num bife de vaca. Subitamente, disse-me: «Repara, Juanjo, cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa.» Compreendi que a escrita, tal como o bisturi do meu pai, cicatrizava as feridas no mesmo momento em que as abria e descobri por que motivo eu era escritor. Não fui capaz de fazer a reportagem: acabava de ser atropelada por um romance.»
a impressão fortíssima causada pela imagem evocada por Juan José Millás é como um carimbo que fica gravado na retina e na memória. mesmo se procuramos desviar a atenção, a imagem continua a seguir-nos, onde quer que pousemos o olhar. é como se o escritor partilhasse connosco uma epifania, e assim, por meio deste livro, nos permitisse tomar parte, em alguma medida, numa brilhante revelação. a escrita que, como um bisturi eléctrico, cicatriza a ferida ao mesmo tempo que a causa. não poderia encontrar melhor metáfora, se a procurasse. e como não procurei, fui abalroada por ela. a criação, e toda a angústia que a rodeia, é uma coisa filha-da-puta.
Etiquetas: a infância, afirmações identitárias, grandes amores, os livros
posted by saturnine | 16:59 |
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11 Comentários:
fogo...eu quero - ou melhor - eu preciso absolutamente desse livro!
deves procurar, sim! é a tua cara. :)
Depois de leres esse livro, podes partir para "A ordem alfabética", também de Juan José Millás. :)
« - Eu acho que és uma espécie de monge.
- Um monge?
- Sim, embora não saiba de que ordem.
- De uma ordem alfabética, claro.»
(não tem a ver directamente com o seu post, mas indirectamente sim, dado que ele é característico do seu blog: hoje, dia 20, passei-lhe uma corrente daquelas que andam por aí... era só para a avisar., só lhe pega se quiser, claro!
abraço)
"cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa". Literatura. Cauterizar faz na mesma doer.
e em que é que isso invalida a metáfora, henedina? toda a gente sabe que o que arde cura (e o que aperta segura)! :p
é mesmo a minha cara. confesso que também fui atropelada. feira do livro colheita de 2009. li-o em 2 dias.
eu calculava. ainda bem que gostaste. :)
eu sabia que tinha visto a refª ao livro/autor algures, por alguém "cujas refªs contam"... :) comprei-o este fds
"Quem teve frio em pequeno, terá frio o resto da vida, porque o frio da infância não desaparece nunca."
com isto, fiquei com (+) saudades de blogar :) talvez hoje ainda...
maggie...![hug]
também tenho andado meio afastada, mas com saudades vossas.
ooohhh! saudades de vocês também! ainda bem que gostaste, maggie, depois quero ver essas blogagens. ;)
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