O ponto de vista dos demónios #29
Bonnie "Prince" Billy | The Letting Go
nesta noite algo de extraordinário aconteceu. estávamos num camarote, num balcão, a uma distância que a memória (turva) torna cada vez mais funda, mais imprecisa - mais distante. eu quis gritar qualquer coisa. um pedido, um suspiro, um anseio. mas havia um assombro que tomava secretamente conta de todos os espaços, de imediato me pôs a mão crispada no braço, segurou-me pela garganta: onde pensas que vais, criatura? eu pensava que ia nas asas do desejo. mas fui atirada contra um precipício sem fundo, algo só muito vagamente parecido com as pessoas no chão abaixo de mim, e não, não é a isto que deve saber o voo. era mais uma pequena morte, eu juro que morri ali durante 2 minutos e ainda hoje não sei que sopro me devolveu à vida. caí, circularmente, interminavelmente, até não saber mais por onde cair. quando a dor é grande, os nervos são os primeiros a evadir-se em colapso instantâneo. depois é a vez dos músculos, que petrificam, atraiçoam o gesto previsto. o coração dispara, olha como corre furioso em direcção a lugar nenhum. quem poderia sustê-lo, assim em fuga? pára, regressa, onde vais, coração? subitamente, o corpo é um túmulo. a música, por momentos, eclipsa-se. só com muita dificuldade poderia ousar recordar o que ouvi. a respiração, suspensa, regressa em súbitas emergentes sôfregas golfadas. must - have - a-i-r. o que aconteceu ali (se não foi um encontro com deus ou os seus demónios), pode ter sido o que Bonnie "Prince" Billy cantava:
The Letting Go é um disco extraordinário. demorou a conquistar-me. precisei de estar naquela sala, a ouvir aquelas canções, para me convencer que a voz de Dawn McCarthy era uma benção. da matéria das coisas inexplicáveis, miraculosas, próximas da impossibilidade da perfeição, o título deste disco tem origem num poema. e não pode ser por acaso - não pode - que seja um poema sobre colapso dos nervos, músculos que atraiçoam, corpo que se faz túmulo:
The Nerves sit ceremonious, like Tombs —
The stiff Heart questions was it He, that bore,
And Yesterday, or Centuries before?
The Feet, mechanical, go round —
Of Ground, or Air, or Ought
A Wooden way
Regardless grown,
A Quartz contentment, like a stone —
This is the Hour of Lead —
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the Snow —
First — Chill — then Stupor — then the letting go —
Emily Dickinson
Etiquetas: drogas duras, exercícios de anatomia, música para o dia de hoje, o ponto de vista dos demónios
posted by saturnine | 14:48 |
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6 Comentários:
és tão linda...
muito bonito, o poema.
álbum permanente.
(ah, e que continue a emersão do ponto preto)
Cat: tantas saudades! beijo grande e um abraço de partir costelas. ;)*
alex, e não é que é mesmo?
bruno, por acaso lembrei-me de ti ao escrever o post. ficava sempre "presa" no teu blog por causa da "strange form of life". ;)
lindíssima, essa canção.
ainda se me "gruda", mas não lá por casa.
(um dia destes ainda peço ao bonnie para a cantar por lá outra vez. isto não há repetições, mas à falta de melhor (sorrio), pode ser que te prenda por lá)
bons dias
:) bons dias!
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