o destilar do veneno (ou um exercício de arrogância primordial)
o bicho escala-estantes vive atormentado entre as pessoas. deslocado, estrangeiro, desadaptado. a sua pele não é feita à medida da ignomínia. doem-lhe os dedos em ferida. sangram, porque os livros não perdoam os maus tratos. mudos e quedos, ruminam silenciosos uma vingança, e ripostam. tombam, mordem, agridem, arranham. debatem-se, furiosos, contra a destruição. em seu redor, a maldade geral das pessoas. o crime da ignorância. as pessoas, que destroem tudo em que tocam. movem-se como gigantescas implacáveis máquinas debulhadoras, avançando sem contemplações como se não houvesse amanhã num mundo que fosse como uma Zara em época de saldos.
ignoram a vida secreta dos livros e a profundeza das feridas da desconsideração. movem-se como forças defeituosas da natureza, cegas, imparáveis, deixando atrás de si cenários de guerra. os estilhaços cobrem as costas do bicho escala-estantes, cujo ofício é viver escavando no meio dos escombros. não há tempo para revisitar os velhos poemas, e os lugares encantados da literatura, o António Gancho e o seu ar da manhã, ou o Faulkner e do seu som e a fúria, por que ninguém pergunta. o bicho escala-estantes sente o coração insuflado porque conhece um qualquer livro especial numa estante em particular, sempre à espera que lhe perguntem por ele, porque dele saberá dizer "sim, ainda bem que me pergunta, porque ele tem estado aqui à espera que perguntem por ele". mas nunca ninguém pergunta.
as pessoas são animais brutos e feios. gostam do lixo bruto e feio à sua semelhança. o bicho escala-estantes sofre, atormentado, o insulto da estupidez. o crime da ignorância. nunca conheci um leitor amante de Nicholas Sparks que soubesse pronunciar correctamente o filha-da-puta do raio do nome do gajo. puta que os pariu. se não sabem ler, porque lêem? ah, imbecil ignorante vil criatura! recolhe a esse canto obscuro sob a pedra debaixo da qual saíste e não me aborreças. eu tenho estantes para escalar, mundos para conhecer, livros para cuidar, vidas inteiras para viver, ainda antes de o dia findar. não tenho mãos para ti, que te apertem o pescoço quando abres a boca para falar. oh, tivesse eu mãos que te suprimissem o fluxo verborreico, ou - porque não? - a própria respiração...! o meu coração ao pé da boca e os meus dedos em ferida anseiam pelo silêncio de um quarto com alguma luz, alguma música, e a companhia dos livros. dito em tempos, há um hábito de sanidade na misantropia.
Etiquetas: bicho escala-estantes, greves renúncias e outras rebeliões, livro de reclamações
posted by saturnine | 02:24 |
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3 Comentários:
muito muito bom. o texto.
Má, a contundente verdade.
de cortar a respiração
"foda-se".
desculpa, mas cito alguém.
(quanto à misantropia, um gajo já cá está. e há muita doença aí também. e falsa liberdade.)
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