tendo ou não nascido para os livros, acontece por vezes um indivíduo dar-se conta de que efectivamente vive para os livros, convive com eles, deixa-os povoar todo o espaço da sua memória e dos seus afectos, deixa-os povoar ainda o espaço soçobrante dos seus sonhos, respira com eles, adoece com eles, aproxima-se e afasta-se do sentido das coisas com eles. não fossem as pessoas (impossíveis, mal acabadas, insuportáveis - porque lhes acresce esse cancro a que a que os livros são alheios: a fala), e seria um vida tranquila. uma vida de bicho escala-estantes. por vezes um indivíduo imagina-se diminuto, sabe que poderia enfiar o seu corpo em qualquer espaço entre prateleiras, percorre corredores e corredores de (des)arrumação, e escala escala escala: retira estes livros daqui, arruma outros dois acolá, muda este para ali onde estão os seus irmãos, depois talvez contemple o trabalho feito, com as mãos e a roupa cheias de pó. trepa em desequilíbrio eminente, um pé aqui, outro pé acolá, este braço puxa-me para aqui, esta mão segura-me acolá. quando toca com a ponta dos dedos o tecto, repousa. observa o mundo cá em baixo e pode ser que se dê o acaso de se achar melhor instalado, não querer regressar ao lugar mundano das vozes que não se calam. mas regressa. e desce. passa diminuto ao largo dos zumbidos impertinentes porque é uma criatura com uma missão: amanhã é preciso recomeçar tudo de novo. percorrer corredores, levar os livros de encontro aos seus irmãos, estes saem daqui, aquele volta para acolá, fazer das estantes um lugar habitado, escalar, escalar, escalar.
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em tempos a blogoesfera conheceu em tempos uma belíssima criatura, de seu nome Vincent Bengeldorff, um bicho estranho e generoso que se auto-apelidava de bicho escala-estantes, graças ao qual tenho hoje o meu exemplar em segunda mão do "Fahrenhei 451". a ele dedico este post, ainda que autobiográfico, pela saudade.Etiquetas: afirmações identitárias, bicho escala-estantes