domingo, 2 de setembro de 2007



so this is literature (#5)


não será fácil voltar a acontecer uma deambulação domingueira tão extensa por aqui. por isso, é aproveitar e fartar, vilanagem! sobre os posts autobiográficos, então:

quando se pensa que se seria feliz se se fizesse vida a escrever sobre qualquer coisa, arranja-se maneira de pelo menos passar a vida a fazê-lo. desde que me lembro de saber escrever que o faço. e antes de escrever, desenhava. a minha existência sobrevive à custa de ser riscada, portanto. toda a vida tive cadernos. e quando a caligrafia se tornou um estorvo, pelo desábito, arranjei outros. hoje em dia, quando se pensa que se seria feliz se se fizesse vida a escrever sobre qualquer coisa, cria-se um blog. uma espécie de speaker's corner privado onde tudo é permitido, mesmo dizer mal da rainha de Inglaterra. escreve-se, sim, para fazer qualquer coisa deste ofício de existir. correndo o risco de me repetir, sou uma lírica por natureza. aqui, não me distingo. poderia dizer, sem mentir, que todos os meus posts são autobiográficos, se imaginar que escrevo como quem marca no chão um X e afirma: "este é o lugar de onde eu vejo o mundo".

à parte isso, a literalidade assusta-me. um escrever virado para dentro, apesar de tudo, não é exactamente o mesmo que um escrever sobre si. o que há de exorcismo e catarse e libertação numa escrita dirigida aos demónios interiores, é precisamente o que transcende a literalidade das memórias e dos afectos. é a transformação, a metamorfose proporcionada pelas palavras, que faz do que dói e do que comove qualquer coisa outra que valha a pena perpetuar. que não se lhe substitui mas que o universaliza, descentrando-o. isto é: o que dói, se transformado pela escrita, assume uma existência nas palavras que transcende o que é facto, o que é vivido, e adquire a sua existência própria enquanto lírica, independentemente do objecto que o alimenta. se eu escrevo para ti é porque me é conveniente que exista esse abstracto de alguém em quem eu possa reunir as coisas que gostaria de poder dizer. e digo-as de qualquer modo, quer me dirija a um tu real ou imaginário ou híbrido de todos os alguéns a quem gostaria de poder dizer coisas – porque o que importa é que há um propósito de escrever. as palavras emergem, como crescenças fibrosas num corpo a que têm que ser arrancadas, para garantir a sua sobrevivência. ou pelo menos é isto que se faz neste blog. arrancar nacos de carne à matéria do mundo.

num semelhante gesto, está sempre implícita a procura do outro. é que um escrever virado para dentro também não é exactamente o mesmo que escrever para si. se se escreve busca-se reconhecimento, empatia, comoção. escreve-se num blog em vez de num caderno privado porque há um espaço onde o outro desempenha um papel importante, de ver através das nossas palavras as coisas que nomeamos - e rever-se ou não nelas. mas de um modo ou de outro, sempre tocar. comunicar. ligar. mas se por um lado se escreve em prol da empatia, por outro a subjectividade – bem, na verdade preferia chamar-lhe ambiguidade – facilita as conclusões precipitadas, os equívocos, os mal-entendidos. é um risco que se assume, sempre que se escreve. até porque não escrevemos sempre para ser bem entendidos. e se na maioria das vezes me é indiferente a forma como me lê o anónimo leitor que de um lugar ou de outro vem cá parar, acontece que outras vezes me desencorajam as interpretações deturpadoras. há uma cumplicidade desejada, implícita na empatia a pouco e pouco conquistada, mas há um espaço de liberdade que o anonimato permite que a intimidade tende a diluir por completo. o que também é desejável por seu lado. gerir o grau de exposição. escrever de modo autobiográfico. fabricar. fabricar coisas melhores que os sentimentos com as palavras que eles originam. tudo coisas difíceis.

na maioria das vezes, nem imagino o quão obsessiva devo parecer a quem não está na posse da informação toda. o que é perfeitamente compreensível, uma vez que sou mesmo obsessiva. mas não me entendam mal: como diz um amigo meu, em pessoa sou muito menos bulímica do que na escrita. esgoto os assuntos, e anseio sempre secretamente para que não esgotem – enquanto há assunto, há matéria de escrita. esgoto as memórias das perdas, não porque me doam permanentemente, mas porque justificam a evocação de frases assim: “morto amado nunca mais pára de morrer” [Mia Couto]. agora imaginem repetir esta frase até à exaustão. a certa altura, ela há-de deixar de dizer tanto. há-de separar-se da própria metáfora que a anima, há-de desprender-se de qualquer objecto com que se identifique. e ainda assim, permanecerá uma frase fabulosa. é esse o valor da escrita. superar, em riqueza e valor, as próprias coisas que circunscreve.

há em mim uma rede de associações afectivas inevitáveis, que levam a sentir-me neste blog, por vezes, como habitando uma casa cheia de fantasmas. e por causa disso mesmo, por vezes, apetece-me abandonar tudo e partir para um deserto desconhecido. escrever noutro lado, onde seja possível ainda tratar fantasmas pelo nome, sem constrangimentos de pudor. mas não me interessa. isto é que tenho a dizer ao mundo: separei-me de ti, e o que me dói, dói agora secretamente. agradeço-te a música e os filmes, os amores e desamores, a pele e a ferida. mas não é já a ferida que esta escrita evoca: é o espaço em volta, de pele dorida, que eu não sei descrever – e por isso escrevo, como quem tacteia. dizer do amor, pela enésima vez, não é portanto equivalente a amar-te ainda. é só, como quem tacteia, procurar o lugar de ter-te amado. e por isso é que escrever é inventar, e é preencher os espaços em branco, e é completar o que falta à substância dos dias. atribuir uma ordem interna a todas as coisas. simular "um lugar onde pousar a cabeça". ofício de quem, como diz tão bem este gajo, "tem de gerir uma kasbah por dentro".





Etiquetas: ,


posted by saturnine | 21:08 |


---------------------------------------------------------------------------------------------------------------

14 Comentários:

Blogger Menina Limão disse...

ena, um verdadeiro tratado. posso assinar por baixo?

1:17 da manhã  
Blogger saturnine disse...

podes. :P (por isso é que eu fujo dos textos longos.)

1:59 da manhã  
Blogger Menina Limão disse...

não foi por ser longo. nesse caso diria 'testamento'. o assunto não é novo entre nós, mas está, obviamente, muito bem escrito. e, claro, subscrevo.

2:28 da manhã  
Blogger saturnine disse...

bem, err... hmm... pois. ihihihi. :')

3:50 da manhã  
Blogger marta (doavesso) disse...

enquanto lia pensava e dizia por dentro, bem... e pensava o que dirá ela a seguir? tão certa, tão clara e inequívoca, tão no fio que conduz a trama das coisas. Olha, gostei mesmo, sabe bem ler alguém que se reconhece assim, alguém em que me revejo desde há muito, sobretudo nisso que quiseste dizer ao mundo, onde me encontro afinal tão perto, quando dizes do ferir aberto, e eu crei que te entendo, porque sinto.
enfim, repito: gostei muito. dizes muito.
um beijo

1:36 da tarde  
Blogger V. disse...

Olha, sem palavras. Acho que também vou pedir para assinar por baixo. Se um dia soubesse escrever sobre escrever, escrevia assim... E pronto. Tudo dito.

Beijinho*

Sentei à minha mesa
os meus demónios interiores
falei-lhes com franqueza
dos meus piores temores

tratei-os com carinho
pus jarra de flores
abri o melhor vinho
trouxe amêndoas e licores

chamei-os pelo nome
quebrei a etiqueta
matei-lhes a sede e a fome
dei-lhes cabo da dieta

conheci bem cada um
pus de lado toda a farsa
abri a minha alma
como se fosse um comparsa

E no fim, já bem bebidos
demos abraços fraternos
saíram de mansinho
aos primeiros alvores
de copos bem erguidos
brindámos aos infernos
fizeram-se ao caminho
sem mágoas nem rancores

Adeus, foi um prazer!
disseram a cantar
mantém a mesa posta
porque havemos de voltar


(...)

2:05 da tarde  
Blogger saturnine disse...

marta, sabes que também te sinto aqui. :)

vanessa, é curioso que tinha precisamente essa música em mente quando falei dos demónios interiores. :)

beijinhos às duas. **

2:49 da tarde  
Blogger João Lisboa disse...

Go, lbs, go!

Sabes que este é um belíssimo texto, não sabes?

12:47 da manhã  
Blogger sophiarui disse...

“Na verdade ainda virá longe o tempo em que a mulher se possa sentar a escrever um livro sem descobrir um novo fantasma para matar ou um rochedo para demover do seu caminho”

Virginia Woolf, “Professions for Women”

9:00 da manhã  
Blogger saturnine disse...

JL, tinha algumas suspeitas... mas é bom saber. :)

sophia, não conhecia esse livro da Woolf. bela citação.

12:56 da tarde  
Blogger bookworm disse...

[speachless]

abraço.

8:19 da tarde  
Blogger saturnine disse...

(...) :)

9:15 da tarde  
Blogger © Maria Manuel disse...

«escrever é inventar, e é preencher os espaços em branco, e é completar o que falta à substância dos dias. atribuir uma ordem interna a todas as coisas.»

isto diz-me muito.
todo o texto me tocou, diz o que penso muitas vezes ser indizível...
bjinho!

8:52 da manhã  
Blogger saturnine disse...

se assim é, cumpriu a sua função. :)

1:14 da tarde  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial


spot player special




"us people are just poems"
[ani difranco]


*

calamity.spot[at]gmail.com



~*. through the looking glass .*~




little black spot | portfolio
Baucis & Philemon | tea for two
os dias do minotauro | against demons
menina tangerina | citrus reticulata deliciosa
the woman who could not live with her faulty heart | work in progress
pale blue dot | sala de exposições
o rosto de deus | fairy tales








---------------------------------------------------------------------------------------------------------------


~*. rearview mirror .*~


maio 2003 . junho 2003 . julho 2003 . agosto 2003 . setembro 2003 . outubro 2003 . novembro 2003 . dezembro 2003 . janeiro 2004 . fevereiro 2004 . março 2004 . abril 2004 . maio 2004 . junho 2004 . julho 2004 . agosto 2004 . setembro 2004 . outubro 2004 . novembro 2004 . dezembro 2004 . janeiro 2005 . fevereiro 2005 . março 2005 . abril 2005 . maio 2005 . junho 2005 . julho 2005 . agosto 2005 . setembro 2005 . outubro 2005 . novembro 2005 . dezembro 2005 . janeiro 2006 . fevereiro 2006 . março 2006 . abril 2006 . maio 2006 . junho 2006 . julho 2006 . agosto 2006 . setembro 2006 . outubro 2006 . novembro 2006 . dezembro 2006 . janeiro 2007 . fevereiro 2007 . março 2007 . abril 2007 . maio 2007 . junho 2007 . julho 2007 . agosto 2007 . setembro 2007 . outubro 2007 . novembro 2007 . dezembro 2007 . janeiro 2008 . fevereiro 2008 . março 2008 . abril 2008 . maio 2008 . junho 2008 . julho 2008 . agosto 2008 . setembro 2008 . outubro 2008 . novembro 2008 . dezembro 2008 . janeiro 2009 . fevereiro 2009 . março 2009 . abril 2009 . maio 2009 . junho 2009 . julho 2009 . agosto 2009 . setembro 2009 . outubro 2009 . novembro 2009 . dezembro 2009 . janeiro 2010 . fevereiro 2010 . março 2010 . maio 2010 . junho 2010 . julho 2010 . agosto 2010 . outubro 2010 . novembro 2010 . dezembro 2010 . janeiro 2011 . fevereiro 2011 . março 2011 . abril 2011 . maio 2011 . junho 2011 . julho 2011 . agosto 2011 . setembro 2011 . outubro 2011 . janeiro 2012 . fevereiro 2012 . março 2012 . abril 2012 . maio 2012 . junho 2012 . setembro 2012 . novembro 2012 . dezembro 2012 . janeiro 2013 . janeiro 2014 .


---------------------------------------------------------------------------------------------------------------


~*. spying glass .*~


a balada do café triste . ágrafo . albergue dos danados . almanaque de ironias menores . a natureza do mal . animais domésticos . antologia do esquecimento . arquivo fantasma . a rute é estranha . as aranhas . as formigas . as pequenas estruturas do ócio . atelier de domesticação de demónios . atum bisnaga . auto-retrato . avatares de um desejo . baggio geodésico . bananafish . bibliotecário de Babel . bloodbeats . caixa-de-lata . casa de cacela . chafarica iconoclasta . coisa ruim . com a luz acesa . comboio de fantasmas . complicadíssima teia . corpo em excesso de velocidade . daily make-up . detective cantor . dias com árvores . dias felizes . e deus criou a mulher . e.g., i.e. . ein moment bitte . em busca da límpida medida . em escuta . estado civil . glooka . i kant, kant you? . imitation of life . isto é o que hoje é . last breath . livros são papéis pintados com tinta . loose lips sink ships . manuel falcão malzbender . mastiga e deita fora . meditação na pastelaria . menina limão . moro aqui . mundo imaginado . não tenho vida para isto . no meu vaso . no vazio da onda . o amor é um cão do inferno . o leitor sem qualidades . o assobio das árvores . paperback cell . pátio alfacinha . o polvo . o regabofe . o rosto de deus . o silêncio dos livros . os cavaleiros camponeses no ano mil no lago de paladru . os amigos de alex . Paris vs. New York . passeio alegre . pathos na polis . postcard blues . post secret . provas de contacto . respirar o mesmo ar . senhor palomar . she hangs brightly . some variations . tarte de rabanete . tempo dual . there is only 1 alice . tratado de metatísica . triciclo feliz . uma por rolo . um blog sobre kleist . vazio bonito . viajador


---------------------------------------------------------------------------------------------------------------


~*. the bell jar .*~



os lugares comuns: against demons . all work and no play . compêndio de vocações inúteis  .  current mood . filosofia e metafísica quotidiana . fruta esquisita menina aflita . inventário crescente de palavras mais-que-perfeitas . miles to go before I sleep . música no coração  .  música para o dia de hoje . o ponto de vista dos demónios . planos para dominar o mundo . this magic moment  .  you came on like a punch in the heart . you must believe in spring


egosfera: a infância . a minha vida dava um post . afirmações identitárias . a troubled cure for a troubled mind . april was the cruellest month . aquele canto escuro que tudo sabe . as coisas que me passam pela cabeça . fruto saturnino (conhecimento do inferno) . gotham style . mafarricar por aí . Mafia . morto amado nunca mais pára de morrer . o exílio e o reino . os diálogos imaginários . os infernos almofadados . RE: de mail . sina de mulher de bandido . the woman who could not live with her faulty heart . um lugar onde pousar a cabeça   .  correio sentimental


scriptorium: (des)considerações sobre arte . a noite . and death shall have no dominion . angularidades . bicho escala-estantes . do frio . do medo . escrever . exercícios . exercícios de anatomia . exercícios de respiração . exercícios de sobrevivência . Ítaca . lunário . mediterrânica . minimal . parágrafos mínimos . poemas . poemas mínimos . substâncias . teses, tratados e outras elocubrações quase científicas  .  um rumor no arvoredo


grandes amores: a thing of beauty is a joy forever . grandes amores . abraços . Afta . árvores . cat powa . colectânea de explicações avulsas da língua portuguesa  .  declaração de amor a um objecto . declaração de amor a uma cidade . desolação magnífica . divas e heróis . down the rabbit hole . drogas duras . drogas leves . esqueletos no armário . filmes . fotografia . geometrias . heart of darkness . ilustraçãoinício . matéria solar . mitologias . o mar . os livros . pintura . poesia . sol nascente . space is the place . the creatures inside my head . Twin Peaks . us people are just poems . verão  .  you're the night, Lilah


do quotidiano: achados imperdíveis . acidentes quotidianos e outros desastres . blogspotting . carpe diem . celebrações . declarações de emergência . diz que é uma espécie de portfolio . férias  .  greves, renúncias e outras rebeliões . isto anda tudo ligado . livro de reclamações . moleskine de viagem . níveis mínimos de suporte de vida . o existencialismo é um humanismo . só estão bem a fazer pouco


nomes: Aimee Mann . Al Berto . Albert Camus . Ana Teresa Pereira  . Bauhaus . Bismarck . Björk . Bond, James Bond . Camille Claudel . Carlos de Oliveira . Corto Maltese . Edvard Munch . Enki Bilal . Fight Club . Fiona Apple . Garfield . Giacometti . Indiana Jones . Jeff Buckley  .  Kavafis . Klimt . Kurt Halsey . Louise Bourgeois . Malcolm Lowry . Manuel de Freitas . Margaret Atwood . Marguerite Duras . Max Payne . Mia Couto . Monty Python . Nick Drake . Patrick Wolf  .  Sophia de Mello Breyner Andresen . Sylvia Plath . Tarantino . The National . Tim Burton


os outros: a natureza do mal . amigos . dedicatórias . em busca da límpida medida . retalhos e recortes



---------------------------------------------------------------------------------------------------------------

...it's full of stars...


This page is powered by Blogger. Isn't yours?

blogspot stats