duas ou três razões por que me apaixonei pelo salinger
«Ficou sentado a fumar e a tentear com a língua. Depois, abruptamente, familiarmente,e, como de costume, sem nenhum aviso, pareceu-lhe sentir que o seu espírito se deslocava e vacilava, como a bagagem mal segura num porta-bagagens do comboio.»
(...)
«Agora, pela terceira vez desde que regressara do hospital, abriu o livro dela e leu a breve dedicatória na página de guarda. Escritas a tinta, em alemão, numa letra pequena, desesperadamente sincera, liam se as palavras: "Meu Deus, a vida é um inferno." Nada antes, nem nada a seguir. Solitárias na página, na quietude doentia do quarto, as palavras pareciam assumir a dimensão de uma máxima incontestável, clássica até. X ficou de olhos pregados na página durante vários minutos, tentando, contra ventos e marés, não ser arrastado.»
Para Esmé - com amor e sordidez
* * *
«Houve três ou quatro vezes que, ao ver o que havia nos envelopes deles, estive para me levantar e apresentar um protesto formal a M. Yoshoto. Mas não tinha uma dieia clara da forma que o meu protesto deveria tomar. Acho que tinha medo que pudesse ir à mesa dele só para declarar, esganiçado: "A minha mãe morreu e eu tenho de viver com o encantador marido dela, e ninguém fala francês em Nova Iorque, e não há nenhumas cadeiras no quarto do seu filho. Como pode esperar que eu ensine estes dois malucos a desenhar?" Mas afinal, com o meu longo treino em manter o desespero açaimado, acabei por conseguir com toda a facilidade ficar no meu lugar.»
(...)
«Quando estava quase a adormecer, fizeram-se ouvir os gemidos no quarto dos Yoshotos, do outro lado da parede. Imaginei os dois Yoshotos a vir ter comigo na manhã seguinte a pedir-me, a implorar, que ouvisse o secreto problema deles, até ao mínimo, terrível, pormenor. Via exactamente como seria. Eu, sentado entre os dois à mesa da cozinha, ouvindo um e outro. Ouvia, ouvia, ouvia, com a cabeça entre as mãos - até que finalmente, não podendo aguentar mais, enfiava a mão pela garganta abaixo de Madame Yoshoto, agarrava o coração dela e aquecia-o como se faz a um passarinho. Depois, quando tudo ficasse como deve ser, mostrava aos Yoshotos os trabalhos da irmã Irma, e eles partilhariam da minha alegria.
Os factos são sempre óbvios demasiado tarde, mas a diferença mais singular entre a felicidade e a alegria é que a felicidade é um sólido e a alegria um líquido.»
(...)
«Quando estava de volta de onde quer que eu tenha passado o fim do dia - e lembro-me que era depois doe scurecer -, detive-me no passeio em frente à escola e olhei para a montra da loja de próteses ortopédicas. E então aconteceu uma cosia absolutamente horrível. Fui possuído pelo pensamento de que por mais serenamente, ou mais sensatamente, ou mais graciosamente, que eu pudesse algum dia aprender a viver a minha vida, nunca passaria, na melhora dos casos, de um visitante num jardim de urinóis e aparadeiras esmaltados, com uma deidade-manequim, cega, em madeira, postada a meu lado com uma funda hernial de pechisbeque. Este pensamento, como é natural, não seria suportável pro mais do que uns segundos. Lembro-me de subir as escadas a correr até ao meu quarto, de me despir e de me enfiar na cama sem sequer abrir o meu diário, e muito menos escrever alguma coisa.»
A fase azul de Daumier-Smith
JD Salinger | Nove Contos
Etiquetas: grandes amores, os livros
posted by saturnine | 11:44 | 0 Comentários
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