o ponto de vista dos demónios #13
(ou da natureza das feridas)
Ciente da enfermidade, o que eu esperava era uma cura milagrosa, um remédio para a verdade, tão inútil e desconcertada. O que eu não estava era preparada para ver. E, hoje sei-o, estes anos serviram-me só para que aprendesse a morrer - porque o amor, esse estava perdido já desde o primeiro momento. Mas porque dói e porque arde e porque se desmancha o corpo inteiro?
A cura dos enfermos depende de uma coisa: as plantas medicinais necessitam ser ingeridas ou postas sobre o corpo. Então o enfermo deve decidir: estou capaz de beber? Estou capaz de me despir? *
Se a certas coisas cheguei sempre tarde demais, outras inquestionavelmente chegaram-me demasiado cedo. E eu não queria, ou não podia compreender. Não bebi, nem me despi. Mantive-me enferma à espera que outra coisa viesse. O que veio foi, afinal, uma pequena morte. Mas eu acredito no alimento das cinzas.
Há quem não queira ser curado. Há quem não esteja ainda no ponto de ser curado. Acho que a doença tem um lado de privilégio: obriga-nos a encarnar, obriga-nos ao exercício do corpo. A sentir o corpo. *
Agora, que estou aqui, entrando a correr na noite escura, dispo-me e deito-me sobre o chão purificado pelo fogo, e contraponho a minha nudez ao silêncio do firmamento. Há uma mão que por vezes se estende, e eu aguardo o bálsamo para as velhas feridas. Agora, só quero o que vier depois. A consciência da terra basta-me, para já, para existir.
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* Saravá Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá
Que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu Orixá
Amor só é bom se doer
Baden Powell e Vinicius de Moraes