o apelo dos livros: parte i
tudo isto para afirmar, com pompa e circunstância, por que não me é possível, na maioria das vezes, ler livros emprestados, que pertencçam a um terceiro. é verdade que admiro em certa medida aqueles que se relacionam com os seus livros com um certo desprendimento. não sou capaz.
há temas que necessariamente procedem dessa tal linguagem subjectiva da nossa afectividade, que não é mais do que dizer que há assuntos que nos fascinam e apaixonam porque provocam o reconhecimento de uma identidade (a nossa), ao falarem-nos daquilo de que estamos predispostos a gostar. como se cada indivíduo tivesse inscrito um código genético do imaginário, que o faz reagir a estímulos específicos. o referencial da minha infância traz imprimido no seu âmago a imagem dos desertos: Sahara, A Lagoa Azul, por coincidência, dois filmes em que a Brooke Shields é protagonista.
sem que o soubesse, estava a plantar a semente que viria a favorecer, no futuro, o reconhecimento de uma ideia que os desertos simbolicamente encerram: a desolação magnífica de Buzz Aldrin, trazer a vastidão por dentro. este fascínio pelo deserto não exclui a sua parte de fascínio pelo desconhecido e pelo exótico, que necessariamente define a tendência para um certo nomadismo: o gosto pela viagem. por esse motivo, caminhei desde a infância construindo um imaginário que me preparava para me apaixonar por Bruce Chatwin, do mesmo modo que me predispunha para me apaixonar agora por Michel Onfray, hedonista convicto que, com a sua Teoria da Viagem (uma poética da geografia) resgata a filosofia do nomadismo de Chatwin e constrói ele próprio, de certo modo, uma anatomia da errância.
trata-se de um pequeno ensaio brilhante, que se saboreia e devora enquanto se lê, e que, falando dessa tal poética da geografia como uma geografia sentimental que é "o grande poema do mundo", me comoveu e apaixonou ao ponto de me deixar rendida. uma escrita de tom sensorial favorece a poética que despoleta os mecanismos do imaginário. aperitivo:
"Assim, num primeiro momento, é preciso aceitar os odores de um mercado oriental, os aromas do incenso, do açafrão ou do sândalo de um templo budista, desejar as cores alaranjadas, azuis e violeta de um pôr-de-sol no cume das dunas sarianas, acolher com benevolência o calor seco, brutal e dessecante de um deserto africano, escutar com deslumbramento os gritos dos pássaros raros ou dos macacos-uivadores, o coaxar dos sapos lerdos ou os zunidos dos élitros dos insectos tropicais, descobrir a sombra das ruelas, a frescura das ruas, a obscuridade dos túneis das cidades mediterrânicas, beber a água gelada de uma fonte medieval perdida numa cidade contemporânea, deixar a boca ser invadida pelo sabor de uma papaia, pela violência verde de um limão, pelo gosto amargo contudo caramelizado de um café do Kanyan, ou mesmo pelo tabaco egípcio perfumado com maçã ou pelo ópio chinês, sentir a textura e a porosidade das pedras tombadas de um templo siciliano por onde deambularam filósofos pré-socráticos - sentir violentamente o seu corpo existir na doçura de um instante vivido de uma forma mágica e magnífica."
Michel Onfray
Teoria da Viagem (uma poética da geografia)
Etiquetas: filosofia e metafísica quotidiana, heart of darkness, o exílio e o reino, os livros, teses tratados e outras elocubrações científicas
posted by saturnine | 11:44 | 5 Comentários
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