o Nick Cave data de temos tão remotos na minha vida musical que a memória das primeiras audições evoca uma época em que ainda lia a colecção Triângulo Jota. decorria o ano de 1992 da graça do Senhor, o Henry's Dream acabadinho de sair. bem sei que cada coisa é uma coisa e que cada maravilha é sempre a única maravilha e que o amor é sempre uma coisa do princípio e do fim do mundo. mas ainda assim não é hipérbole nem falta à verdade se constatar que não me lembro de outra coisa assim. uma epifania completa: you came on like a punch in the heart. foram precisos 16 anos (mais de metade da minha vida) para ver como era aquele rock, aquela fúria, assim de perto. e agora, percorrer assim os caminhos tortuosos, ramificados, intrincados, a que conduzem estas músicas, é como um súbito alívio de agarrado. o corpo expande-se em interna descompressão. coladas a essas músicas, há toda a parafernália de recordações da entrada abrupta nos vintes, as aulas de desenho, as festas de fim de semestre, a evidência do verão à chegada de Junho, os jardins ociosos das Belas Artes, o sol, as noites, os perfumes, os rostos que beijei, meu deus, os rostos que desejei beijar, muitas tardes passadas no quarto pequeno, com pouca luz, a imaginar encontros, a fantasiar futuros, a carpir as mágoas habituais, sem saber muito bem que ordem havia na desordem completa do mundo, mas sabendo que havia uma música que era um farol e que dizia estoicamente the mercy seat is waiting/ and I think my head is burning/ and in a way I'm yearning/ to be done with all this measuring of truth./ an eye for an eye/ a tooth for a tooth/ and anyway I told the truth/ and I'm not afraid to die. muitas tardes que se transformaram em noites. noites que se transformaram em pessoas. pessoas que se transformaram em paixões. paixões que se transformaram naquilo que me lembro daquilo que sou. how fucking romantic. acho que chegou a minha vez. se eu fosse um vídeo, seria este:
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quarta-feira, 23 de abril de 2008
you came on like a punch in the heart*
eu não me contentaria com nada menos do que o melhor. não me contentaria com menos do que ter a certeza que aquele olhão azul estava mesmo ali a azular. estava tão perto que os perdigotos do senhor me acertavam.
morri ali pelo menos uma ou duas vezes. mas a mensagem estava por todo o lado: dig yourself. e regressei. de coração abalroado. não há escala para isto, não é tão bom quanto melhor que muito pior ainda que. é só uma evidência absolutamente necessária: um grande amor à espera de ser cumprido. não havia tempo que bastasse para tudo o que havia para ser dito. mas houve verdade suficiente para que os anos se condensassem de súbito em breves instantes. os rostos que eu percorri, meu dEUS, as memórias. uma vida inteira ali dentro, uma vida inteira carregada de gente, de histórias dentro de músicas dentro de histórias. não era preciso muito para que fosse um concerto bestial: o essencial eu levo sempre comigo. e eu, que sou assumidamente uma "Henry's Dream" / "Let love in" kind of girl e que sempre achei que era quase imperdoável a irremediabilidade da passagem do tempo, dei por mim a gostar deste homem-grinderman. é-se o que se é, o tempo todo não nos pertence. ficamos com o pouco que nos calha. e ainda assim, por vezes, é tão mais do que aquilo que deveríamos esperar.
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sexta-feira, 18 de abril de 2008
on being the woman who could not live with her faulty heart
foi a lebre que me serviu o prato. o mundo passou a fazer subitamente muito mais sentido desde o dia em que Margaret Atwood passou a constar do meu livro de citações internas de emergência. assumi um epíteto.
há uma certa ordem subjacente a todas as coisas, incluindo ao caos de uma vida, tudo espera o momento para se revelar e em cada revelação, ao olho atento, se mostram as intricadas ramificações de ligações que atribuem significância ao universo em redor. há uma luta corpo-a-corpo, de dentro para fora e de fora para dentro, de um corpo consigo próprio. uma sucessão truculenta de mútuos ataques, investidas, atraiçoamentos, reconciliações. em pano de fundo, existe a morte, muda, silenciosa, impenetrável, mediadora: é, pois, uma luta até à morte.
este é o meu objecto de estudo (e a Margaret Atwood enuncia-o). para efeitos de elucubração neste post, nomeio-me primeira cientista das poéticas corporais.
o que eu não sabia, então, é que há poemas que têm duas cabeças* e eu tinha ainda uma para descobrir. finalmente, chegou-me isto pelo correio:
e assim, eu, que não consigo viver com o meu coração defeituoso, constato:
The Woman Makes Peace with Her Faulty Heart
It wasn't your crippled rhythm I could not forgive, or your dark red skinless head of a vulture.
but the things you hid: five words and my lost gold ring, the fine blue cup you said was broken that stack of faces, gray and folded, you claimed we'd both forgotten, the other hearts you ate, and all that discarded time you hid from me, saying it never happened.
There was that, and the way you would not be captured, sly featherless bird, fat raptor singing your raucous punctured song with your talons and your greedy eye lurking high in the molten sunset sky behind my left cloth breast to pounce on strangers.
How many times have I told you: The civilized world is a zoo, not a jungle, stay in your cage. And then the shouts of blood, the rage as you threw yourself against my ribs.
As for me, I would have strangled you gladly with both hands, squeezed you closed, also your yelps of joy. Life goes more smoothly without a heart, without that shiftless emblem, that flyblown lion, magpie, cannibal eagle, scorpion with its metallic tricks of hate, that vulgar magic, that organ the size and color of a scalded rat, that singed phoenix.
But you've shoved me this far, old pump, and we're hooked together like conspirators, which we are, and just as distrustful. We know that, barring accidents, one of us will finally betray the other; when that happens, it's me for the urn, you for the jar. Until then, it's an uneasy truce, and honor between criminals.
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quarta-feira, 16 de abril de 2008
morto amado nunca mais pára de morrer *
aquilo que nos acontece, nunca simplesmente aconteceu. é perpetuum mobile, nunca mais pára de acontecer. Abril dura para sempre. não nos separamos do tempo que passa. uma ferida passada é um nenúfar no peito. diariamente desabrocha as suas pétalas de estilete.
* Mia Couto
What you did to me made me See myself something different Though I try to talk sense to myself But I just won't listen
Won't you go away Turned yourself in You're no good at confession Before the image that you burned me in Tries to teach you a lesson
What you did to me made me see myself somethin' awful A voice once stentorian is now again meek and muffled It took me such a long time to get back up the first time you did it I spent all I had to get it back, and now it seems I've been outbidded
My peace and quiet was stolen from me When I was looking with calm affection You were searching out my imperfections
What wasted unconditional love On somebody Who doesn't believe in the stuff
You came upon me like a hypnic jerk When I was just about settled And when it counts you recoil With a cryptic word and leave a love belittled
Oh what a cold and common old way to go I was feeding on the need for you to know me Devastated at the rate you fell below me
What wasted unconditional love On somebody Who doesn't believe in the stuff
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01:52 | 1 Comentários ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
segunda-feira, 14 de abril de 2008
insensatez já não mora aqui
pois é. a insensatez já não mora ali. mudamos as nossas saturninas traquitanas todas para aqui. ou estamos em mudanças, pronto. mas estamos a chegar lá. venham ver-nos, please. we have cookies.
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02:55 | 9 Comentários ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
sexta-feira, 11 de abril de 2008
April was the cruelest month #3
(ou o díptico poético-terrorista)
o que eu espero é que passem as águas mil, que o Bill Evans* prevaleça, que Maio seja purgante e eu possa regurgitar o mal de Abril como uma bola de pêlo que me pesa no interior do corpo e o entope como um tapume, que o silêncio dos livros seja mais forte e volte a escutar-se: que por estes dias um bicho escala-estantes sofre, entupido, acanhado, não lendo senão a cartografia cutânea dos seus pulsos magoados.
ou isso, ou que possa entretanto abrir à naifada a goela à chèvre desta infeliz e tipicamente idiota sopeira que, atrás de mim, cacareja incessantemente como se eu me importasse a ponta de um corno saber que lhe dói a unha do pé (ou quaisquer outras maleitas quotidianas de que possa sofrer, que eu cá sou quase surda, tudo o que não me interessa soa sempre à fala indistinta da professora do Charlie Brown).
era o Rui Pires Cabral que dizia, nas minhas mãos, numa música antológica (& onze cidades), num café da rua de Ceuta, num Abril passado: "sem deixar eco qualquer coisa ruía." desde então, alguns dias antes, um sopro mais aflito, uma respiração mais dificultada, um vago torpor só muito subtilmente pressentido. começa a doer-me Abril lentamente por todo o corpo. até hoje, nunca mais parei de ressentir-me do eco dessa qualquer coisa que ruía sem eco num Abril passado. se olho para dentro, constato: tenho uma nódoa negra no coração.
Sempre que eu abrir as portas para o teu tempo, comerei o pó dos dólmens nos cantos da tua boca, em julho entre o arvoredo.
Mais valia que não me tivesses salvo nessa altura, o coração não me basta e ainda se ressente.
It could all be so simple But you'd rather make it hard Loving you is like a battle And we both end up with scars Tell me, who I have to be To get some reciprocity No one loves you more than me And no one ever will
Is this just a silly game That forces you to act this way Forces you to scream my name Then pretend that you can't stay Tell me, who I have to be To get some reciprocity No one loves you more than me And no one ever will
No matter how I think we grow You always seem to let me know It ain't workin'
And when I try to walk away You'd hurt yourself to make me stay This is crazy
I keep letting you back in How can I explain myself As painful as this thing has been I just can't be with no one else See I know what we got to do You let go and I'll let go too 'Cause no one's hurt me more than you And no one ever will
Lauryn Hill | Ex-Factor | The Miseducation of Lauryn Hill