anoiteceu e eu não me apercebi. deveria ser verão, mas as horas faltam já aos dias, como se não fosse já suficiente degredo que lhes falte o sol. obscureceu. ainda assim, uma nova linguagem em mim se engendra. encontro-me próxima de coisas que não supunha tão familiares. a casa, os livros, os cantos escuros que tudo sabem mas silenciam, a vontade de caminhar descalça pelo jardim, de ser novamento criança com os joelhos esfolados a procurar rente aos muros o perfume das madressilvas.
e não sabia — ou não recordava — que estaria tão próxima da chuva. depois da chuvada, o dia nasce limpo, o cheiro que se levanta é o da terra lavada, o mundo aureolado de pureza renovada. por isso gosto do orvalho sobre as folhas, do verde vivo das árvores alimentadas, subitamente gosto até da neblina branca sobre a praia, da chuva atirada contra as vidraças entre rajadas de vento. algo em mim se aproximou do temporal. e já não tenho medo nem tenho cuidado.
nunca me foi desconhecida a abissal significância da água, o negro silêncio das profundezas e os monstros ou demónios que as habitam, a límpida claridade da superfície e a nítida transparência da sua frescura sobre as feridas. sempre soube que na água me reencontraria, e é por isso que hoje não me entristece a chuva nem o vendaval. sou um ser do outono e resigno-me. mas dizer de um elemento a que pertença seria de um minimalismo inverosímil. não sou do ar, nem da terra, nem da água, nem do fogo, mas de todos eles, e em raros momentos como este, apanhada desprevinida no interior da casa, sinto justificada a minha presença na natureza.
posted by saturnine | 21:01 |
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